ENSAIO DE UM CÃO E A VIDA
Adalberto, ao abrir a porta da casa na manhã fria daquele inverno (passara a noite chuviscando), deu-se com a presença de um novo visitante, que se tremia todinho, sem mal ter forças para latir.
- Donde viera aquele cachorrinho? –pensou Adalberto – Uma coisa é certa, está passando bastante frio! Não posso deixá-lo aqui.
Chamou Isabel, sua esposa. Isabel largou os pratos que lavava, enxugou as mãos e correu.
- Veja. Temos um novo hóspede agora... Talvez Maria Rita goste dele.
Dito e feito, quando Maria Rita acordou, indo atrás de sua mãe para lhe dar um café, viu ao canto, surpresa, aquela bolinha de pelos (já enxuta).
- Mãe, que coisinha é essa aqui?
- Ora, Maria Rita, é seu mais novo bichinho de estimação.
- Não acredito! Noossa, que bom! Nem imaginava que teria algo assim me esperando de manhã. Ele tem nome?
- Ainda não. Batize-o, já que é seu.
- Hummm... Acho que como ele cinzentinho, e com umas bolinhas pretas aqui e acolá, lembrou-me baião. Que você acha, mãe, Baião, para nome de cachorro?
- Inusitado! O cachorro é seu... Você que sabe.
- Então, vai ficar Baião mesmo. Viu, cachorrinho? De agora em diante, chamar-se-á Baião, e será meu fiel escudeiro nas brincadeiras do quintal e noutros campos mais de batalha.
- Agora que batizou o cachorro, guerrilheira, venha tomar seu café. Depois você pode começar a treinar seu fiel escudeiro para as “aventuras”...
Maria Rita animara-se com aquela novidade. Nunca tinha pussuído um cachorro. Via na TV crianças brincarem com eles e pensava se com ela seria legal também daquele jeito. Só que aquele ainda era muito frágil. Novinho, pequeno, delicado... Para ser um verdadeiro guerrilheiro e correr com ela, dando suporte na retaguarda durante as expedições ao quintal da mãe e da vovó Nita, teria de aprender a ser esperto e crescer para ficar robusto. Quem sabe ele não ficasse grande o suficiente para se tornar, por vezes, até cavalo de Maria Rita? Como os cachorros têm quatro patas, eles podem correr bem mais rápido que nós (que temos somente duas) e ela poderia, assim, fugir muito mais facilmente de alguma possível emboscada, montada em seu escudeiro grande e forte. Entretanto, isso era só sonho, por ora, e até Maria Rita – sonhadora de plantão, e nada mais natural – sabia que teria muito trabalho pela frente, ao cuidar do presentinho que caíra no alpendre de sua casa naquela manhã.
Os dias passaram naquelas férias de verão. Baião crescia rápido. Maria Rita temia que pouco tempo não coubesse mais na casa, que era baixa. Se continuasse em tal ritmo passaria da altura de seu pai (um gigante) cedinho. No entanto, sua mãe Isabel explicou que ele não cresceria para sempre; haveria de parar quando estive mais ou menos de sua altura. Um alívio para Maria Rita... Menos uma preocupação para aquela cabecinha, que nem sabia direito o significado dessa palavra tão complicada: invenção dos adultos, sempre preocupados com algo.
Baião endureceu as perninhas. Mal percebera e já corria pela casa, vez ou outra deixando um presentinho para a mãe dela limpar. Maria Rita corria com a mão no nariz:
- Mãe, de novo! O Baião “coisou” a sala toda. Que horror! Cachorro feio!
- Maria Rita, você tem de ensiná-lo a fazer lá fora.
Ele aprendeu. E nem demorou... Maria Rita, mesmo em ritmo menor que ele, crescia e ia aprendendo coisas novas nas expedições. Seu escudeiro já a acompanhava; e quando era para sair nelas, parece que se animava mais que sua líder. Com ele, Maria pôde descobrir que no quintal de sua avó havia um enorme formigueiro, e que não era legal mexer com formigas, pois mordiam. Ficava abismada com o trabalho delas. Como, pequeninas, conseguiam juntar tanta terra? E seu pai lhe contou que por dentro havia túneis e túneis, muito compridos, e entrecruzados, que eles faziam para morar; disse também que elas tinham rainha, soldados, operários, que nem os adultos. Maria ouvia atenta e quando foi expiar nas vezes seguintes, prestava ainda mais atenção, e imaginava como devia ser crescer com milhares de irmãos, assim como as formigas. O cachorro, calado que nem ela, parecia partilhar da estupefação. Aquele cachorro tinha sido feito para Maria Rita.
Mais aventuras vieram. Maria Rita aprendeu a subir em pé de goiaba, para comer fruta fresca, e viu como era muito mais gostosa assim. Pena que cachorro não coma fruta. Ele bem que tentou. Lá no pé de goiaba um dia surgiu outra novidade, um ninho de passarinho. Maria Rita (sempre com seu escudeiro) ia lá sempre que conseguia e se escondia atrás de uma moita para assistir a mãe passarinho que trazia gravetos para montar a casinha; Baião sempre dava um jeito de estragar o esconderijo, coçando-se e espantando a observada. Depois de construído o monumento, subiu na goiabeira e, para sua surpresa, Maria Rita encontrou dois ovinhos, branquinhos, lindos. Soube que daqueles ovinhos sairiam novos passarinhos, que colocariam novos ovinhos, que trariam mais pássaros, que colocariam mais ovinhos, e assim se daria para sempre.
- Será que eu também nasci de ovinho? – pensou Maria Rita não só uma vez.
- Não, filha, nasceu de ovinho não. Eu sou nem galinha! – explicou Isabel à filha.
- E como eu vim parar aqui, então?
- Quando você for maior, a mãe conta, tá bem?
Maria Rita ficou maior e recebeu a explicação, tanto da mãe quanto da escola. Infelizmente, aquilo não bastava para ela. Contavam-lhe o “como”, mas mal esboçavam o porquê. Sua mãe ainda contara de uma Papai do Céu, que aprenderia a amar, porém tudo era muito vago.
As expedições continuaram durante anos. Baião, que não ficara realmente do tamanho da casa, nem sequer do tamanho de Maria Rita, acompanhou-a sempre. Ela partilhava suas reflexões com Baião. O cão permanecia absorto, com a língua de fora, arfando, e ouvindo atentamente. Era um confidente, um amigo fiel, um protetor, um brincalhão.
Baião foi um bom amigo, sempre. Assim como acompanhou Maria Rita nas primeiras descobertas pueris, no fascínio daqueles tempos, esteve com ela na arrogância da adolescência. Latiu, impaciente com as discussões dela com seus pais, pois queria ir para as festinhas com as amigas e eles achavam cedo demais para isso. Estava ao lado dela no seu primeiro namorico, não muito frutuoso (por sinal), o rapaz feriu as ilusões de Maria Rita. Baião esteve lá com ela também quando o choro ensinou, e aprendeu com ela, mais muito mais ela aprendeu com ele (taciturno e paciente).
Chegou um dia em que Maria Rita se arrumava para sair de casa rumo à escola. Sempre Baião a acompanhava até as proximidades de lá, sem precisar chamá-lo. Naquele dia não. Maria Rita caminhou. Passou a porta, o alpendre, a calçada, o calçamento inicial da rua... Cadê Baião? Não se sabe. Ao perguntar por ele para a mãe, recebeu a resposta de que não se sabia. Ninguém sabia, nem vizinhos, nem seu pai, sua avó. Ninguém absolutamente. Maria Rita se preocupou, entretanto nutriu a esperança de que mais cedo ou mais tarde ele reapareceria. Passou-se um mês e Maria Rita ainda se lembrava dele, e nada dele reaparecer.
Maria Rita preferiu acreditar que para Baião não bastava mais ser escudeiro, agora ele mesmo seria o líder de sua própria aventura, escrita por ele. Já daquela idade, era bom ele se libertar, aprender coisas novas num mundo que Maria não oferecia. Dessa viagem pros dias de hoje, Baião continua pelo mundo, sabe-se lá qual. Maria Rita? Lembra-se dele ainda, hoje já mulher, pois eles eram unido bastante. A memória não é mais a mesma nem a tristeza também. Um viajante se foi, tão logo quanto veio, e Maria Rita descobriria depois, com o passar dos anos que lhes foram ofertados (sabe-se lá por quem direito) que isso era uma constante, bem dolorosa: os viajantes chegam do nada, e para o nada tornam, repentinamente, sem dar satisfação. Se é que mesmo o nada. Creio que não. Mas aprendeu também nos balaços de cauda de Baião e no brilho de seu olhar, que o que vale na viagem é o aprendizado que se produz, e nos produz como somos: viajantes etéreos e eternos (enquanto dure e após).
- Donde viera aquele cachorrinho? –pensou Adalberto – Uma coisa é certa, está passando bastante frio! Não posso deixá-lo aqui.
Chamou Isabel, sua esposa. Isabel largou os pratos que lavava, enxugou as mãos e correu.
- Veja. Temos um novo hóspede agora... Talvez Maria Rita goste dele.
Dito e feito, quando Maria Rita acordou, indo atrás de sua mãe para lhe dar um café, viu ao canto, surpresa, aquela bolinha de pelos (já enxuta).
- Mãe, que coisinha é essa aqui?
- Ora, Maria Rita, é seu mais novo bichinho de estimação.
- Não acredito! Noossa, que bom! Nem imaginava que teria algo assim me esperando de manhã. Ele tem nome?
- Ainda não. Batize-o, já que é seu.
- Hummm... Acho que como ele cinzentinho, e com umas bolinhas pretas aqui e acolá, lembrou-me baião. Que você acha, mãe, Baião, para nome de cachorro?
- Inusitado! O cachorro é seu... Você que sabe.
- Então, vai ficar Baião mesmo. Viu, cachorrinho? De agora em diante, chamar-se-á Baião, e será meu fiel escudeiro nas brincadeiras do quintal e noutros campos mais de batalha.
- Agora que batizou o cachorro, guerrilheira, venha tomar seu café. Depois você pode começar a treinar seu fiel escudeiro para as “aventuras”...
Maria Rita animara-se com aquela novidade. Nunca tinha pussuído um cachorro. Via na TV crianças brincarem com eles e pensava se com ela seria legal também daquele jeito. Só que aquele ainda era muito frágil. Novinho, pequeno, delicado... Para ser um verdadeiro guerrilheiro e correr com ela, dando suporte na retaguarda durante as expedições ao quintal da mãe e da vovó Nita, teria de aprender a ser esperto e crescer para ficar robusto. Quem sabe ele não ficasse grande o suficiente para se tornar, por vezes, até cavalo de Maria Rita? Como os cachorros têm quatro patas, eles podem correr bem mais rápido que nós (que temos somente duas) e ela poderia, assim, fugir muito mais facilmente de alguma possível emboscada, montada em seu escudeiro grande e forte. Entretanto, isso era só sonho, por ora, e até Maria Rita – sonhadora de plantão, e nada mais natural – sabia que teria muito trabalho pela frente, ao cuidar do presentinho que caíra no alpendre de sua casa naquela manhã.
Os dias passaram naquelas férias de verão. Baião crescia rápido. Maria Rita temia que pouco tempo não coubesse mais na casa, que era baixa. Se continuasse em tal ritmo passaria da altura de seu pai (um gigante) cedinho. No entanto, sua mãe Isabel explicou que ele não cresceria para sempre; haveria de parar quando estive mais ou menos de sua altura. Um alívio para Maria Rita... Menos uma preocupação para aquela cabecinha, que nem sabia direito o significado dessa palavra tão complicada: invenção dos adultos, sempre preocupados com algo.
Baião endureceu as perninhas. Mal percebera e já corria pela casa, vez ou outra deixando um presentinho para a mãe dela limpar. Maria Rita corria com a mão no nariz:
- Mãe, de novo! O Baião “coisou” a sala toda. Que horror! Cachorro feio!
- Maria Rita, você tem de ensiná-lo a fazer lá fora.
Ele aprendeu. E nem demorou... Maria Rita, mesmo em ritmo menor que ele, crescia e ia aprendendo coisas novas nas expedições. Seu escudeiro já a acompanhava; e quando era para sair nelas, parece que se animava mais que sua líder. Com ele, Maria pôde descobrir que no quintal de sua avó havia um enorme formigueiro, e que não era legal mexer com formigas, pois mordiam. Ficava abismada com o trabalho delas. Como, pequeninas, conseguiam juntar tanta terra? E seu pai lhe contou que por dentro havia túneis e túneis, muito compridos, e entrecruzados, que eles faziam para morar; disse também que elas tinham rainha, soldados, operários, que nem os adultos. Maria ouvia atenta e quando foi expiar nas vezes seguintes, prestava ainda mais atenção, e imaginava como devia ser crescer com milhares de irmãos, assim como as formigas. O cachorro, calado que nem ela, parecia partilhar da estupefação. Aquele cachorro tinha sido feito para Maria Rita.
Mais aventuras vieram. Maria Rita aprendeu a subir em pé de goiaba, para comer fruta fresca, e viu como era muito mais gostosa assim. Pena que cachorro não coma fruta. Ele bem que tentou. Lá no pé de goiaba um dia surgiu outra novidade, um ninho de passarinho. Maria Rita (sempre com seu escudeiro) ia lá sempre que conseguia e se escondia atrás de uma moita para assistir a mãe passarinho que trazia gravetos para montar a casinha; Baião sempre dava um jeito de estragar o esconderijo, coçando-se e espantando a observada. Depois de construído o monumento, subiu na goiabeira e, para sua surpresa, Maria Rita encontrou dois ovinhos, branquinhos, lindos. Soube que daqueles ovinhos sairiam novos passarinhos, que colocariam novos ovinhos, que trariam mais pássaros, que colocariam mais ovinhos, e assim se daria para sempre.
- Será que eu também nasci de ovinho? – pensou Maria Rita não só uma vez.
- Não, filha, nasceu de ovinho não. Eu sou nem galinha! – explicou Isabel à filha.
- E como eu vim parar aqui, então?
- Quando você for maior, a mãe conta, tá bem?
Maria Rita ficou maior e recebeu a explicação, tanto da mãe quanto da escola. Infelizmente, aquilo não bastava para ela. Contavam-lhe o “como”, mas mal esboçavam o porquê. Sua mãe ainda contara de uma Papai do Céu, que aprenderia a amar, porém tudo era muito vago.
As expedições continuaram durante anos. Baião, que não ficara realmente do tamanho da casa, nem sequer do tamanho de Maria Rita, acompanhou-a sempre. Ela partilhava suas reflexões com Baião. O cão permanecia absorto, com a língua de fora, arfando, e ouvindo atentamente. Era um confidente, um amigo fiel, um protetor, um brincalhão.
Baião foi um bom amigo, sempre. Assim como acompanhou Maria Rita nas primeiras descobertas pueris, no fascínio daqueles tempos, esteve com ela na arrogância da adolescência. Latiu, impaciente com as discussões dela com seus pais, pois queria ir para as festinhas com as amigas e eles achavam cedo demais para isso. Estava ao lado dela no seu primeiro namorico, não muito frutuoso (por sinal), o rapaz feriu as ilusões de Maria Rita. Baião esteve lá com ela também quando o choro ensinou, e aprendeu com ela, mais muito mais ela aprendeu com ele (taciturno e paciente).
Chegou um dia em que Maria Rita se arrumava para sair de casa rumo à escola. Sempre Baião a acompanhava até as proximidades de lá, sem precisar chamá-lo. Naquele dia não. Maria Rita caminhou. Passou a porta, o alpendre, a calçada, o calçamento inicial da rua... Cadê Baião? Não se sabe. Ao perguntar por ele para a mãe, recebeu a resposta de que não se sabia. Ninguém sabia, nem vizinhos, nem seu pai, sua avó. Ninguém absolutamente. Maria Rita se preocupou, entretanto nutriu a esperança de que mais cedo ou mais tarde ele reapareceria. Passou-se um mês e Maria Rita ainda se lembrava dele, e nada dele reaparecer.
Maria Rita preferiu acreditar que para Baião não bastava mais ser escudeiro, agora ele mesmo seria o líder de sua própria aventura, escrita por ele. Já daquela idade, era bom ele se libertar, aprender coisas novas num mundo que Maria não oferecia. Dessa viagem pros dias de hoje, Baião continua pelo mundo, sabe-se lá qual. Maria Rita? Lembra-se dele ainda, hoje já mulher, pois eles eram unido bastante. A memória não é mais a mesma nem a tristeza também. Um viajante se foi, tão logo quanto veio, e Maria Rita descobriria depois, com o passar dos anos que lhes foram ofertados (sabe-se lá por quem direito) que isso era uma constante, bem dolorosa: os viajantes chegam do nada, e para o nada tornam, repentinamente, sem dar satisfação. Se é que mesmo o nada. Creio que não. Mas aprendeu também nos balaços de cauda de Baião e no brilho de seu olhar, que o que vale na viagem é o aprendizado que se produz, e nos produz como somos: viajantes etéreos e eternos (enquanto dure e após).
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